quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Uma casa ou um monte de tijolos?

Participando do PróLetramento com a equipe do LIMC / UFRJ, fiquei assustada com a tremenda redução no conteúdo estudado nos anos iniciais. Chego a perguntar se as crianças de hoje nascem menos inteligentes e mais limitadas do que há tempos atrás.
Examinando os livros didáticos dos primeiros anos do nível fundamental, percebe-se que o estudante trabalha muito, mas não vai adiante nos assuntos focalizados. O resultado é que a grande maioria dos estudantes dessa faixa não sabe sequer contar o que está aprendendo de Matemática.
São muitas as atividades que procuram dar significado aos objetos da Aritmética, já mais raras aquelas que lidam com as grandezas ou figuras geométricas, menos ainda com o tratamento de dados, a não ser uso de gráficos e tabelas como fonte de números, o que chega, às vezes, a ser um abuso.
Os bons autores se desdobram em criar situações variadas na proposição de atividades, nos mais diversos contextos, com uso, às vezes excessivo, de recursos gráficos de alta qualidade. A falta, porém, de avanço no uso e aplicação desses procedimentos, a insistência em manter-se nas introduções, a fuga de qualquer dificuldade um pouco maior e o medo da repetição, impedem, a meu ver, que o estudante tenha uma visão do poder da Matemática e de suas ferramentas.
Todo o primeiro segmento do nível fundamental (o antigo primário) permanece na introdução: com números inteiros, nem sempre o algoritmo da divisão é dado completamente, as operações com frações resumem-se a algumas que podem ser calculadas diretamente do significado das frações e a divisão, quando é citada, fica só em casos particulares. Algo parecido acontece com as operações com números racionais na forma decimal. Fatos análogos acontecem nos outros campos.
Essa parcimônia na introdução de algoritmos, o que facilitaria as aplicações e poderia sedimentar os conceitos, é justificada com o argumento de que o estudante está ainda construindo interiormente os significados dos objetos e procedimentos da Matemática. Acontece que, mais adiante, quando essa maior autonomia é cobrada do aluno, ele ainda não foi exposto a ela e os novos professores, aqueles do segundo segmento (antigo ginásio), com outra formação e, muitas vezes, noutra escola ou noutro ambiente, esperam mais do aluno. O resultado é que o estudante terá que vencer sozinho a distância entre as atividades introdutórias e a prática dos procedimentos.
Em contraposição a decorar e manipular, sem entender, o aluno, atualmente, passa os primeiros anos realizando atividades que procuram dar sentido ao que eles vão, afinal, estudar muito depois, em outro segmento, com professores que têm outra formação.
Uma tal situação, a mim, me parece análoga a um fazendeiro que enviasse uma turma para arar e adubar um terreno e, algum tempo depois, pedisse a um outro grupo que fosse lançar as sementes, sem qualquer indicação sobre a terra que fora preparada.
E volto a perguntar: será que as crianças de hoje estão nascendo menos inteligentes do que nós? “No meu tempo”, quando saímos do curso primário, tínhamos pela frente um exame de admissão, em que resolvíamos problemas de Aritmética, usando números racionais positivos escritos de qualquer maneira, trabalhávamos com as unidades métricas e suas transformações. Estudávamos, entre outros assuntos, porcentagens, juros simples, divisão proporcional, calculávamos perímetros, áreas das figuras planas mais comuns e volumes de paralelepípedos.
Eu e muitas crianças que estudávamos em escolas públicas de Santos, tínhamos só 3 horas de aula por dia. No Grupo Escolar Doutor Cesário Bastos, havia 3 turnos: das 8 às 11 horas, das 11 às 14 e das 14 às 17 horas. É verdade que não tínhamos intervalo para recreio e tínhamos aulas aos sábados, mas o curso era só de 4 anos.
Ao perceber esse fato, senti um vago mal estar e levei essa queixa ao meu marido. Foi, então, que o Mauricio me apresentou uma citação do matemático francês, Henri Poincaré (1854–1912), que definiu perfeitamente meu mal estar:

Faz-se a ciência com fatos, como uma casa com tijolos, mas um acúmulo de fatos não é uma ciência, do mesmo modo que um monte de tijolos não é uma casa.
É isso o que sinto, ao ler bons livros didáticos para os anos iniciais do nível fundamental: eles só acumulam tijolos...
Essa situação mais me preocupa, quando é sabido e notório que temos maior capacidade de aprendizagem quando somos crianças. Estudos atuais são mais contundentes e afirmam que, não só aprendemos mais quando somos mais novos, como isso é determinante para facilitar a aprendizagem futura. Um estudo desenvolvido por um grupo da Academia Brasileira de Ciências, coordenado pelo matemático-economista Aloisio Pessoa de Araujo, focaliza a aprendizagem da linguagem e lá se encontram, por exemplo (http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-2003.pdf):
Alunos que tiveram mais estímulos cognitivos até os quatro anos de idade chegam à escola em melhores condições de aprender. (p.vii)

De acordo com a neurobiologia, sabe-se que o desenvolvimento mais acentuado da estrutura cerebral (volume e maturação cerebral e, notadamente, sinaptogênese) ocorre nos primeiros anos de vida. (p.3)

As intervenções que começam na mais tenra idade produzem os maiores efeitos. (p.16)

Baseado em estudos como esses, nosso governo antecipou a entrada no curso fundamental em 1 ano. Temos, agora, 5 anos no primeiro segmento.
Mas, o que vejo?
Ao invés de antecipar o conteúdo a ser ensinado, a fim de explorar melhor o potencial de aprendizagem da criança, entregar o estudante mais preparado ao segundo segmento e elevar o nível de qualidade de nossa educação, o que vejo é o prolongamento das atividades introdutórias que eram objeto de estudo nos anos iniciais, de 4, para 5 anos.
Comparadas as coleções anteriores da 1ª à 4ª série com as coleções atuais, do 1º ao 5º ano, não vejo acréscimo de conteúdo.
De que adianta esse ano a mais na escola?

3 comentários:

  1. o "santos passos" mandou-me cá, e eu, que sou bem mandada, vim logo a correr...

    em portugal, nos primeiros 4 anos de escolaridade (que se chama 1.º ciclo) existe a monodocência, isto é, o mesmo professor leciona todas as disciplinas. por isso, também sou professora de matemática.
    e vou tentar estar atenta a este blog, porque tenho imensa curiosidade sobre assuntos de ensino e aprendizagem.

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  2. É verdade que a Saltapocinhas veio logo a correr, mas não tem nada de bem mandada!
    Beijinhos do
    Beto

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  3. Ótimo, Saltapocinhas, minha antiga conhecida do blog do meu irmão (http://santospassos.blogspot.com/), vamos poder conhecer um pouco do que acontece em Portugal.
    Também aqui no Brasil, nos 5 primeiros anos, em geral, o professor da turma é um só e dá todas as matérias.

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