segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Minha primeira professora de Matemática

Minha mãe fazia o curso Normal, já depois de termos nascido minha irmã e eu, quando seu professor de Matemática, que exercia também funções de inspetor (naquele tempo, havia inspetores federais que visitavam as escolas oficiais e particulares), a chamava para substituí-lo quando ele precisava faltar. A partir daí, ela deixou de ser professora primária para dar aulas de Matemática, mesmo sem ter feito curso superior. Naquela época, não era preciso ser licenciada para ter o registro do MEC.
Na nossa cidade, não havia faculdade de Matemática, tendo, então, que aprender pelos livros e por uns poucos cursos de férias com professores da Faculdade de Filosofia da USP, ela se tornou uma tremenda professora: justificava cada passo dos processos usados e sempre com grande paciência. Alguns de seus alunos são hoje professores de Matemática também.
Naquele tempo, tínhamos que resolver longos problemas por Aritmética e, mais tarde, por Álgebra. Eu ainda me lembro dos recursos gráficos que ela usava. Se o problema dizia que o pai distribuiu 140 reais de mesada entre seus 3 filhos, dando ao filho do meio 20 reais a mais do que ao caçula e ao primogênito 10 reais a mais do que ao filho do meio, ela começava por traçar segmentos que ilustravam os fatos enunciados:
             quantia dada ao caçula;
                                  
            quantia dada ao filho do meio;
                                                                                   
              quantia dada ao primogênito.



Que, unidos, sugerem as operações que devem ser feitas:

Ficava claro, portanto, que, tirados 20 reais + 20 reais + 10 reais dos 140 reais, sobravam 3 quantias iguais às dadas ao caçula.
E era desse modo que ela resolvia muitos outros problemas, como divisão proporcional, sem ter que decorar regras.
Além disso, passar daí à linguagem algébrica era um pequeno passo. Uma escolha conveniente da incógnita, literalmente, saltava aos olhos. Nesse caso, por exemplo, ficava claro que uma escolha conveniente seria chamar de x a mesada do caçula e a equação satisfeita por x nada mais era do que uma outra “leitura” do mesmo gráfico:
x + x + 20 + x + 20 + 10 = 140.
Muitos anos depois, quando eu já era professora, li alguns artigos de Didática da Matemática, que discutiam o uso de gráficos como esses na resolução de problemas. Um deles descrevia uma pesquisa com turmas de controle, em que os estudantes que usaram tais gráficos saíam-se bem melhor nas avaliações.
Assim que participei da criação da RPM (= Revista do Professor de Matemática), pedi à minha mãe, que já não lecionava por problemas na garganta, que escrevesse sobre o uso que ela fazia da balança no estudo das equações do 1º grau. Fiz algumas modificações no manuscrito que ela me deu e que resultou no artigo Com ajuda da balança (RPM 03). Hoje, depois de ter lecionado 18 anos no curso normal, sei que teria sido muito melhor publicar o artigo exatamente como ela o escreveu.
E o que ela tem a ver com o título deste blog? É que ela se chamava Celina e, para indicar o final da prova de um teorema, costumava escrever c.q.d. (= como queríamos demonstrar). Seus alunos, no entanto, teimavam em ler: Celina que demonstrou!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Uma casa ou um monte de tijolos?

Participando do PróLetramento com a equipe do LIMC / UFRJ, fiquei assustada com a tremenda redução no conteúdo estudado nos anos iniciais. Chego a perguntar se as crianças de hoje nascem menos inteligentes e mais limitadas do que há tempos atrás.
Examinando os livros didáticos dos primeiros anos do nível fundamental, percebe-se que o estudante trabalha muito, mas não vai adiante nos assuntos focalizados. O resultado é que a grande maioria dos estudantes dessa faixa não sabe sequer contar o que está aprendendo de Matemática.
São muitas as atividades que procuram dar significado aos objetos da Aritmética, já mais raras aquelas que lidam com as grandezas ou figuras geométricas, menos ainda com o tratamento de dados, a não ser uso de gráficos e tabelas como fonte de números, o que chega, às vezes, a ser um abuso.
Os bons autores se desdobram em criar situações variadas na proposição de atividades, nos mais diversos contextos, com uso, às vezes excessivo, de recursos gráficos de alta qualidade. A falta, porém, de avanço no uso e aplicação desses procedimentos, a insistência em manter-se nas introduções, a fuga de qualquer dificuldade um pouco maior e o medo da repetição, impedem, a meu ver, que o estudante tenha uma visão do poder da Matemática e de suas ferramentas.
Todo o primeiro segmento do nível fundamental (o antigo primário) permanece na introdução: com números inteiros, nem sempre o algoritmo da divisão é dado completamente, as operações com frações resumem-se a algumas que podem ser calculadas diretamente do significado das frações e a divisão, quando é citada, fica só em casos particulares. Algo parecido acontece com as operações com números racionais na forma decimal. Fatos análogos acontecem nos outros campos.
Essa parcimônia na introdução de algoritmos, o que facilitaria as aplicações e poderia sedimentar os conceitos, é justificada com o argumento de que o estudante está ainda construindo interiormente os significados dos objetos e procedimentos da Matemática. Acontece que, mais adiante, quando essa maior autonomia é cobrada do aluno, ele ainda não foi exposto a ela e os novos professores, aqueles do segundo segmento (antigo ginásio), com outra formação e, muitas vezes, noutra escola ou noutro ambiente, esperam mais do aluno. O resultado é que o estudante terá que vencer sozinho a distância entre as atividades introdutórias e a prática dos procedimentos.
Em contraposição a decorar e manipular, sem entender, o aluno, atualmente, passa os primeiros anos realizando atividades que procuram dar sentido ao que eles vão, afinal, estudar muito depois, em outro segmento, com professores que têm outra formação.
Uma tal situação, a mim, me parece análoga a um fazendeiro que enviasse uma turma para arar e adubar um terreno e, algum tempo depois, pedisse a um outro grupo que fosse lançar as sementes, sem qualquer indicação sobre a terra que fora preparada.
E volto a perguntar: será que as crianças de hoje estão nascendo menos inteligentes do que nós? “No meu tempo”, quando saímos do curso primário, tínhamos pela frente um exame de admissão, em que resolvíamos problemas de Aritmética, usando números racionais positivos escritos de qualquer maneira, trabalhávamos com as unidades métricas e suas transformações. Estudávamos, entre outros assuntos, porcentagens, juros simples, divisão proporcional, calculávamos perímetros, áreas das figuras planas mais comuns e volumes de paralelepípedos.
Eu e muitas crianças que estudávamos em escolas públicas de Santos, tínhamos só 3 horas de aula por dia. No Grupo Escolar Doutor Cesário Bastos, havia 3 turnos: das 8 às 11 horas, das 11 às 14 e das 14 às 17 horas. É verdade que não tínhamos intervalo para recreio e tínhamos aulas aos sábados, mas o curso era só de 4 anos.
Ao perceber esse fato, senti um vago mal estar e levei essa queixa ao meu marido. Foi, então, que o Mauricio me apresentou uma citação do matemático francês, Henri Poincaré (1854–1912), que definiu perfeitamente meu mal estar:

Faz-se a ciência com fatos, como uma casa com tijolos, mas um acúmulo de fatos não é uma ciência, do mesmo modo que um monte de tijolos não é uma casa.
É isso o que sinto, ao ler bons livros didáticos para os anos iniciais do nível fundamental: eles só acumulam tijolos...
Essa situação mais me preocupa, quando é sabido e notório que temos maior capacidade de aprendizagem quando somos crianças. Estudos atuais são mais contundentes e afirmam que, não só aprendemos mais quando somos mais novos, como isso é determinante para facilitar a aprendizagem futura. Um estudo desenvolvido por um grupo da Academia Brasileira de Ciências, coordenado pelo matemático-economista Aloisio Pessoa de Araujo, focaliza a aprendizagem da linguagem e lá se encontram, por exemplo (http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-2003.pdf):
Alunos que tiveram mais estímulos cognitivos até os quatro anos de idade chegam à escola em melhores condições de aprender. (p.vii)

De acordo com a neurobiologia, sabe-se que o desenvolvimento mais acentuado da estrutura cerebral (volume e maturação cerebral e, notadamente, sinaptogênese) ocorre nos primeiros anos de vida. (p.3)

As intervenções que começam na mais tenra idade produzem os maiores efeitos. (p.16)

Baseado em estudos como esses, nosso governo antecipou a entrada no curso fundamental em 1 ano. Temos, agora, 5 anos no primeiro segmento.
Mas, o que vejo?
Ao invés de antecipar o conteúdo a ser ensinado, a fim de explorar melhor o potencial de aprendizagem da criança, entregar o estudante mais preparado ao segundo segmento e elevar o nível de qualidade de nossa educação, o que vejo é o prolongamento das atividades introdutórias que eram objeto de estudo nos anos iniciais, de 4, para 5 anos.
Comparadas as coleções anteriores da 1ª à 4ª série com as coleções atuais, do 1º ao 5º ano, não vejo acréscimo de conteúdo.
De que adianta esse ano a mais na escola?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Um sonho, nem sempre realidade

Nem sempre consegui seguir o roteiro que descrevo agora, mas foi o que procurei fazer a cada novo tópico a ser trabalhado em sala de aula.
Esse roteiro tem 3 etapas.
A primeira delas é apresentar para que serve o assunto a ser introduzido. Isso pode ser feito com a proposta de algum problema cuja solução seja facilitada pela ferramenta a ser introduzida, ou por meio de alguma aplicação, enfim, um disparador do tema. Essa aplicação não precisa ser necessariamente de caráter prático ou do cotidiano, podendo ser uma aplicação dentro da própria Matemática. Enfim, o objetivo é convencer o estudante que vale a pena investir no assunto.
A segunda etapa é apresentar os objetos e os processos utilizados, sempre de modo que façam sentido para o aluno. O estudante precisa entender o que está fazendo. Evitar, a todo custo, a repetição sem significado. Por outro lado, é importante observar que, nem sempre, o estudante será capaz de expor, naquele momento, qual seja esse sentido. Tais significados precisam ser apresentados, mas, na maior parte das vezes, não devem, nem precisam, ser cobrados de pronto. O amadurecimento do estudante, o uso e aplicação em outros contextos das ferramentas e dos procedimentos introduzidos são fatores que dependem de tempo e que vão, aos poucos, sedimentando a compreensão dos conceitos e a linguagem para descrevê-los.
A terceira etapa, que já tem levantado alguma controvérsia, mas da qual não abro mão, é a da automatização de alguns dos procedimentos utilizados. Como em outras atividades, a automatização de uma etapa é condição para facilitar o avanço para etapas seguintes. Se uma criança não sabe de cor a tabuada, a resolução de questões simples pode tomar-lhe muito tempo e, principalmente, provocar um desgaste inútil e causar desinteresse. O mesmo se dá com um estudante que precisar, por exemplo, recorrer às ideias da balança, a cada passo, na resolução de uma equação.
Não defendo a ideia da automatização sem significado, mas estacionar no significado não ajuda nosso aluno. Vale lembrar que, nem sempre, a calculadora substitui o cálculo mental. Por exemplo, na descoberta de regularidades numa sequência numérica, a prática do cálculo mental pode ser de extrema necessidade.
Uma característica destas três etapas é que elas não se desenvolvem de maneira estanque, uma depois da outra, mas se entrelaçam no desenvolvimento do tópico. Por exemplo, problemas de aplicação, que só possam ser apresentados já na fase da automatização, complementam as duas fases anteriores.
Observo também que a terceira etapa não é mais importante que as anteriores, mas sinto necessidade de fazer dela uma defesa e uma explicação mais detalhadas, pois não há consenso a esse respeito. Muito ao contrário, a Bebel e eu fomos duramente criticadas por algumas colegas aqui do Rio de Janeiro, numa ocasião em que, como coordenadoras de um Programa de Oficinas, solicitado à PUC-RIO pela Secretaria Municipal de Educação, apresentamos essas três etapas. Naquela ocasião, fomos acusadas de querer reduzir o ensino da Matemática a puros mecanismos, o que seria, na opinião de quem nos acusava, um retrocesso.
Que fique bem claro que defendo a automatização de alguns procedimentos necessários a etapas posteriores, mas sempre apoiada no entendimento de cada passo.

Por que um blog?

O que pretendo discutir com quem esteja interessado não cabe numa revista de Matemática, pois só posso escrever sobre Matemática muito simples. Não cabe também numa revista de Educação Matemática porque se trata de experiência pessoal, sem tratamento estatístico, nem compromisso com fundamentação teórica.


Daí a ideia deste blog.

Pretendo expor aqui meus sonhos e minha realidade, como professora de Matemática por mais de meio século, para trocar ideias com meus colegas.
É simplesmente o que ficou na minha lembrança da experiência em sala de aula, quando me preocupei muito mais com os alunos que apresentavam dificuldades do que com aqueles que tinham facilidade para as coisas da Matemática.


Por que C.Q.D?


Quando fui aluna do ginásio (= 2º segmento do ensino fundamental, hoje), todos os alunos conheciam essa sigla. Para os mais novos, c.q.d. é a abreviatura de como queríamos demonstrar. Para mim, tem ainda um sentido muito especial, relativo à minha primeira professora de Matemática, sobre quem pretendo escrever num dia desses.